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Vacas, elefantes e homens imprudentemente poéticos

  • Foto do escritor: Michelle Ramos
    Michelle Ramos
  • 18 de ago. de 2019
  • 2 min de leitura


Nesses tempos complicados tenho lido. Saramago. #leiamSaramago


Quando eu era jovem (já não sou mais jovem há tempos) minha mãe me dizia que uma hora o gás do ímpeto acaba. Dia desses confidenciei a um amigo (que também já não me parece ser amigo mais... é muita liquidez né Bauman?) que estava cansada de guerrear. Perguntei a ele: como faço para sair da batalha? A quem entrego minha rendição?


Então veio Saramago. Transcrevo abaixo o trecho do livro A Viagem do Elefante:


"As vacas têm história, tornou o comandante a perguntar, sorrindo, Esta, sim, foram doze dias e doze noites nuns montes da galiza, com frio, e chuva, e gelo, e lama, e pedras como navalhas, e mato como unhas, e breves intervalos de descanso, e mais combates e investidas, e uivos, e mugidos, a história de uma vaca que se perdeu nos campos com a sua cria de leite, e se viu rodeada de lobos durante doze dias e doze noites, e foi obrigada a defender-se e a defender o filho, numa longuíssima batalha, a agonia de viver no limiar da morte, um círculo de dentes, de goelas abertas, as arremetidas bruscas, as cornadas que não podiam falhar, de ter de lutar por si mesma e por um animalzinho que ainda não podia se valer, e também aqueles momentos em que o vitelo procurava as tetas da mãe, e sugava lentamente, enquanto os lobos se aproximavam, de espinhaço raso e orelhas aguçadas. Subhro respirou fundo e prosseguiu, Ao fim dos doze dias a vaca foi encontrada e salva, mais o vitelo, e foram levados em triunfo para a aldeia, porém o conto não vai acabar aqui, continuou por mais dois dias, ao fim dos quais, porque se tinha tornado brava, porque aprendera a defender-se ou sequer aproximar-se dela, a vaca foi morta, mataram-na, não os lobos que em doze dias vencera, mas os mesmos homens que a haviam salvo, talvez o próprio dono, incapaz de compreender que, tendo aprendido a lutar aquele antes conformado e pacífico animal não poderia parar nunca mais."


Quando li esse trecho do livro tomei um choque. Saramago falou comigo. Disse ao meu ouvido que quem vê ameaça em tudo acabará derrotado.


Mas eis que a literatura sempre aponta saídas. Não sei se acontece com vocês, mas meus livros conversam entre si. Algo como um Toy Story que se passa numa biblioteca e logo que fecho a porta eles criam vida e danam a tagarelar. Dessa vez Valter Hugo Mãe foi quem fez o contraponto: "Contar-se-ia para sempre que um homem fora condenado a meditar no fundo de um poço durante sete sóis e sete luas e que, apavorado com o escuro, se amigou do próprio medo. Sentindo-lhe carinho." Se Saramago desenhou o problema, esse trecho do livro Homens Imprudentemente Poéticos apontou uma saída.


Vamos seguindo em frente, amigando-nos dos nossos medos. No hoje. Porque Saramago também disse: "Cada segundo que passa é como uma porta que se abre para deixar entrar o que ainda não sucedeu (...) o futuro não é mais que o tempo de que o eterno presente se alimenta."Mas isso é outro livro e outra história.

 
 
 

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