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O conhecimento não encontra palavra para todas as coisas.

  • Foto do escritor: Michelle Ramos
    Michelle Ramos
  • 18 de ago. de 2019
  • 4 min de leitura

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Essa história aconteceu há uns dias. Na verdade, há uns anos... Vamos brincar de back-foward pra contar esse caso.


Tenho um grupo de amigos. Mas não somos amigos como em Friends. Não vivemos na casa uns dos outros, não nos encontramos com periodicidade definida, não sabemos qual carro cada um tem, talvez nem saibamos o escritor predileto ou o time de coração de cada um (quiçá se a pessoa gosta de futebol). Mas somos amigos em um nível mais profundo, porque sabemos onde o sapato de cada um anda apertando. Inclusive é bem possível que cada um dos quatro tenha apertado uma tecla diferente no ultimo dia 28/10 e discutimos isso abertamente em nosso último encontro.


Mas para mim, a despeito de sermos um grupo, tenho histórias muito particulares com cada um deles. Gustavo já comeu o churrasco mais salgado do mundo em um domingo em que fazíamos trabalho da faculdade na casa dos meus pais. A Lelê tinha um Gol branco, com um câmbio curto, e era uma experiência andar com ela naquele carro. Meu Deus, ela mal tinha 18 anos e tinha um carro novo (e um namorado mala). A Alê, nem vou entrar na profundidade do rolo em que nos metemos em certo momento da nossa amizade. Nunca falei com eles sobre essas lembranças indeléveis que trago comigo.


Voltando ao presente, nos encontramos há uns dias, numa praça de alimentação de shopping decadente. Discutimos política um monte. Falamos do jornalismo que nos une (eu até instalei minha polêmica quando disse que sou da época da barriga e do furo, que acho Fake News uma velha novidade). E num momento de divagações sobre a vida particular eu falei de um rompimento recente em minha vida. O amor tem vários arquétipos: tem o amor de Afrodite, de Eros, Ágape e Philos, de Castor e Pólux... Não vou entrar no mérito desse rompimento, pois creio que qualquer rompimento onde haja amor é dolorido.


Nesse momento, todos se silenciaram e me pediram que eu contasse em detalhes o que havia ocorrido. E assim eu fiz. Falei do contexto dos últimos dias, das circunstâncias e das poucas palavras trocadas antes do fim. Um fim que se deu pelo silêncio.


Não por acaso, estava lendo um livro chamado Silêncio na era do ruído de um escritor norueguês chamado Erling Kagge. Sabe aquela historia dos vários nomes que se tem para a neve? Os nórdicos têm essa intimidade com o silêncio, assim como os esquimós tem com a neve. Tudo em volta deles evoca silêncio: design, culinária, literatura, paisagem... Então, aproveitando-se dessa intimidade toda, Kagge analisa o silêncio sob 33 aspectos diferentes. E vou contar uma das histórias do livro para vocês.


Além de escritor, Kagge é também um aventureiro. Ele conta que a Antártida é o lugar mais silencioso em que já esteve. A ausência de tudo e a redundância de neve reverberava apenas o som que ele próprio produzia. Não havia chacoalhar de árvores, não havia canto de pássaros, não havia rios correndo. Apenas a respiração dele próprio e o arrastar dos esquis na neve. Esse cenário de silêncio e “vazio” é o pano de fundo para a história que quero ressaltar. Vou transcrever o parágrafo dele, pois apesar de uma construção simples tem uma força descritiva incrível:


“Os americanos construíram uma base no próprio polo Sul. Cientistas e equipes de manutenção moram ali por meses a fio, completamente isolados do mundo. Houve um ano em que noventa e nove pessoas comemoraram o Natal na base. Uma delas tinha levado noventa e nove pedras e as distribuiu como presentes de Natal, guardando uma para si. Ninguém via uma pedra havia meses. Alguns não as viam fazia mais de ano. Nada além de gelo, neve e objetos criados pelo homem. Todos ficaram parados, sentindo a pedra entre os dedos. Segurando-a na mão, sentindo o peso, sem dizer nada. “


O mesmo se deu entre eu e meus amigos. Li para eles a última troca de mensagens e, como uma boa conservadora que sou, a carta escrita a mão que postei nos correios. Por breves segundos permanecemos todos em silêncio, compartilhando algo que não consigo nominar. Desconfio que a exemplo dos cientistas e suas pedras, cada um ficou com aquela história nas mãos, que naquele momento os sentimentos se tornaram palpáveis como pedra, adquirindo um significado diferente para cada um de nós. Pela primeira vez na vida senti a sensação de uma dor partilhada como uma fatia de torta. Um pouquinho de dor para cada um.


O livro traz também um capítulo sobre Ludwing Wittgenstein, autor do Tractatus Logico-Philosophicus, cuja frase que o encerra diz que “sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar. “ Não se trata de uma passividade mediante os acontecimentos. Na verdade, é uma reflexão sobre os limites das palavras. “O que pode ser mostrado não pode ser dito. “ O conhecimento não encontra palavra para todas as coisas. E aquele silêncio, naquele momento, falou ao meu coração com a profundidade que nenhuma palavra exprimiria.


Esse texto é para agradecer. Obrigada, amigos!

 
 
 

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