Fui ali tomar um sorvete
- Michelle Ramos
- 10 de nov. de 2019
- 3 min de leitura
Atualizado: 28 de jan.
Meu ritual de domingo é sair e tomar um sorvete. Acabei de voltar de lá com uma história pra contar.
Meu filho teve a primeira desilusão amorosa recentemente. Isso só se torna um problema na medida em que não tenho nenhuma palavra de alento para dar a ele. E honestamente, eu não aconselho ninguém a ser como eu. Assim, evito passar esse legado de miséria ao meu filho, mas tudo o que eu falo me soa bem falso. Engraçado vê-lo triste por isso. Porque há dúzias de corações partidos por metro quadrado, mas toda dor de amor parece ser inédita a quem sente. No intuito de ajuda-lo a passar por essa tormenta eu fui lá remexer meu baú de decepções amorosas. Falei pra ele que as pessoas se vão mesmo e precisamos aprender a viver com a falta.
Lembrei-me de quando fui operar a vesícula. Havia uma pedra bem grande dentro dela. Uns médicos diziam que por ser enorme jamais sairia dali, e como eu era assintomática (ou seja, nunca havia tido uma cólica por causa da pedra) poderia viver com esse segunda pedra dentro de mim (a primeira pedra é meu coração). Outros médicos já achavam que a vesícula que fez essa pedra enorme poderia se dar ao luxo de fazer pedras pequenas também e que dessa maneira era melhor tirar pedra, vesícula e tudo mais. Estava nessa dicotomia até que tive minha primeira e última cólica. Ponderei que tomar uma anestesia geral seria uma experiência interessante e assim resolvi tirar a pedra. Isso já tem 4 anos.
O curioso é que até os 37 eu nem me dava conta da existência da tal vesícula. E não fosse a cólica da madrugada, talvez ela vivesse aqui incólume. Mas tem uma coisa engraçada que acontece: sempre que faço uma torção mais complexa no meu abdome eu sinto uma dor onde antes ficava a vesícula. Chamo de dor da falta. O que dói não existe mais. Como algo que não existe mais pode doer? A verdade é que a dor dói até na vácuo. Essa parte da vida não é nada engraçada.
Tem um poema que fala sobre a falta que acho lindo. Seu autor, Robert Desnos era conhecido como "Sonhador Acordado", pois reza a lenda que dormindo era capaz de contar histórias. Quando acordava não se lembrava de nada. Foi preso pela Gestapo e mandado para campos de concentração. Assim que foi preso, ainda capaz de sonhar, escreveu o seguinte à esposa: "Gostaria de te oferecer 100 mil cigarros Americanos, 12 vestidos de grandes costureiros, um apartamento na rua de Seine, um automóvel, a casinha na floresta de Compiègne e um ramo de flores de 4 soldos. Na minha ausência, compra sempre flores, que depois te as pagarei. E o resto, prometo, virá depois." Morreu de febre tifoide, 3 dias depois de ser libertado. Não teve tempo de pagar pelas flores.
Sonhei tanto contigo
Eu tenho sonhado tanto com você
Que você já não pertence mais à realidade
Ainda haverá tempo para tocar seu corpo vivo,
Beijar sua boca e fazer sua voz querida
Ganhar vida outra vez?
Eu tenho sonhado tanto com você
Que meus braços se acostumaram
A ficar cruzados sob meu peito
Enquanto tentavam abraçar sua sombra.
Será que ela voltará a tomar sua real forma?
Eu tenho sonhado tanto com você,
E andado e falado e dormido com o teu fantasma,
Que não me resta mais do que talvez ainda tentar
Ser mais um entre tantos os fantasmas.
Mais uma sombra, uma centena de vezes maior
Que aquela que se projeta e se projetará
Sobre o mostrador do relógio solar da sua vida.
Robert Desnos
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